23 de abril de 2010

A Experiência Encena

A EXPERIÊNCIA ENCENA
Olhar acerca da apresentação do espetáculo solo “Doido” de Elias Andreato como parte da Semana de Recepção aos Calouros nos campi da USP de São Carlos e Ribeirão Preto
Por Cláudia Alves
[E o campus de São Carlos se humanizou!]
“Toda a autoridade é igualmente má!”, o texto citado, escrito por Oscar Wilde e dito pela voz do ator Elias Andreato foi borrifado diretamente nos olhos atentos e juvenis dos ingressantes da Universidade de São Paulo nos dias 24 e 25 de fevereiro, respectivamente nos campi de São Carlos e Ribeirão Preto, como parte da Semana de Recepção aos Calouros. O espetáculo também foi responsável por abrir com uma categoria inegável e uma sutileza absoluta o Circuito TUSP 2010.
O texto de Wilde foi apenas um em meio a tantos outros belos textos que preencheu de poesia a noite de quarta-feira, num espaço destinado à exatidão: o campus de São Carlos. O melhor espetáculo estava na observação atenta (dos nossos futuros cientistas) de uma encenação que era quase um poema. A voz que dizia era também a deles. Os meninos guardaram um tempo do seu precioso tempo para debruçarem-se sobre algo que pouco espaço ainda tem ali: o teatro.
O que vimos foi um grupo de cerca de duzentos e cinqüenta pessoas (e seriam mais se não tivéssemos que fechar as portas!) atentas a um modo de se fazer teatro que pouco ou nada estamos acostumados, já que vivemos em meio a um turbilhão de imagens e palavras vazias que nos assolam cotidianamente, não só na publicidade, não só na TV (meios que nos acostumamos a criticar), mas por que não dizer da própria universidade? Por que não falar do próprio teatro? Ali, Um homem em cena que dizia e pronto. Nós ouvíamos e participávamos de um modo outro, que desaprendemos no caminhar.
O que se viu no palco foi à transposição do que se via na vida, ao menos naquele recorte de vida de dois dias, quando Elias Andreato e sua equipe não só possibilitaram que víssemos um espetáculo de qualidade, feito a mãos ternas, com voz doce e pouca pretensão, mas que víssemos um alguém pleno, que no espaço entre sua chegada e sua partida soube tratar a cada um de nós ( e quando digo nós, digo, todos aqueles com os quais cruzou) com o respeito e atenção devidos, como humanos, parceiros e companheiros de trajetória. De uma ética e gentileza poucas vezes vista. Foi tratado de igual forma, com o amor merecido. A sua experiência, a sua caminhada na Arte feita a passos lentos lhe possibilitou nos ensinar. Já nos ensinava sem estar no palco, mas quando subiu ao palco, o seu jeito claro e límpido de dizer palavras dos outros, que eram acima de tudo as dele e com certeza eram as nossas, levou-nos a um canto do mundo que estamos desacostumados a visitar, propiciou que sentássemos para ouvir, sem imagens grandiosas ou gestos extremamente eloqüentes ou cenografias estratosféricas, ou ainda, pesquisas absolutamente certificadas. Tínhamos um artista em cena falando sobre Arte e sobre vida, sobre ética e sobre amor, sobre democracia e ideal, sobre ternura e respeito. Um homem defendendo com poesia a sua escolha. O que é o teatro senão certa coisa feita pelas mãos dos homens, quase tricô?
Levei um susto, sim, um susto! Não, melhor dizer:Levei um choque, como há muito tempo não levava com o espetáculo que assisti e tive a certeza de que existe um aspecto próprio do teatro que é, de fato, insubstituível: a experiência da apreciação num dado momento, num dado lugar, com certas pessoas (sem direito a replay!). Nenhuma cena vista na internet ou num DVD, nenhum release lido faz jus ao espetáculo visto. Se fôssemos analisar obras teatrais apenas pelo o que vemos nos vídeos acredito que perderíamos um tempo precioso numa análise e num tipo de apreciação que não cabe no teatro, a não ser para que nos dê parâmetros da estrutura, da abordagem, mas é impossível analisar um espetáculo em todos os seus elementos constitutivos apenas por um vídeo, é similar a analisá-lo apenas por um projeto ou por um texto.
Não sei se foi a escolha certa, a que na teoria corresponderia aos anseios prementes dos ingressantes na Universidade, mas foi a melhor escolha. Talvez muitos daqueles estudantes não acreditem terem compreendido algo (o que não significa que não compreenderam!), ou alguns se questionem sobre a pertinência do espetáculo (o que não significa que não seja pertinente!), talvez, outros tantos tenham achado cansativo ouvir a poesia dita ali (tanta outros talvez tenham reclamado do tempo curto, queriam mais!), mas sei que eles se deram o tempo necessário a ouvir. Ouviram até o fim. Alguns riram, alguns choraram. Existia emoção, tanto na gargalhada, quanto na lágrima. Alguns ficaram e conversaram. Uma ingressante desgarrou-se do grupo de veteranos e resolveu permanecer, mesmo com a promessa de que perderia a próxima atividade estudantil empolgante. Ela preferiu falar sobre teatro no seu terceiro dia no Instituto de Física. Muitos ficaram sensíveis ao espetáculo visto. O texto dizia a todos, a cada qual num momento. O artista em cena pedia desculpas pelos bocejos e fez o máximo que podia, o artista abriu o coração e disse sentir inveja de todos aqueles grandes poetas que já amaram de forma tão arrebatadora, o artista falou aos jovens, mas falou aos velhos jovens também, o artista falou e foi lindo!
Após a apresentação, resolvi deixar o espaço aberto. Em verdade, deixei as portas abertas, dei o tempo necessário para que as pessoas saíssem, tomassem água, respirassem. Muitos ficaram e Elias caminhou até eles de uma forma que eu nunca havia visto, sinceramente nunca havia visto. Existia uma abertura no olhar, uma sensibilidade ao espaço habitado, aos homens presentes ali, que era impossível não compreender (tratava-se de outra forma de comunicação que antecedia a palavra).
Durante o diálogo, não existiu o medo do silêncio. Aquele medo que todos temos, do espaço não estar preenchido. Houve diálogo! Não se tratava de um discurso, de uma defesa, de uma obrigação, tratava-se de uma coerência absoluta entre o homem da cena e o homem da vida. E digo mais, naqueles dois dias em que tive a chance de acompanhá-los nos espaços, nas refeições, na viagem de uma cidade a outra pude lançar os meus olhos atentos à conduta, de rara beleza.
Tivéssemos nós a chance de sermos observados pelo mundo, num big brother à brasileira, interiorano, em menor escala, ao invés dos (tele) espectadores ouvirem gritos e beijos, sussurros e promessas na luta incansável por um milhão, na luta exaustiva pela ascensão social e econômica tão almejada, talvez víssemos e ouvíssemos o silêncio das atitudes cotidianas, aqueles gestos que parecem tão simples: o modo de segurar o guarda-chuva, o agradecimento a mulher do caixa, o levantamento do copo de café com leite. Talvez as cenas fossem menos empolgantes e novelescas e não tivéssemos 90 milhões de espectadores, mas quem sabe aprendêssemos um tanto mais sobre ética e, acima de tudo, sobre o motivo da Arte.
[E a música virou cena!]
No campus de Ribeirão Preto o público era menor, vinte e nove pessoas ocupando as cadeiras do Auditório da Tulha, espaço destinado a Música. Mas o público não estava menos atento, não estava menos interessado ao que era dito ali. Decerto que se tratava, em sua maioria, de um público especializado, todos já haviam visto teatro, alguns, inclusive estudantes de teatro. Tínhamos Funcionários e alguns estudantes do campus, de diversas áreas. Observei que algumas pessoas deixaram que as lágrimas saíssem sem freio logo nos primeiros minutos. Senti um bem-estar porque as pessoas se permitiram sentir, (ainda é possível sentir algo com teatro, no teatro). E foi ali, naquele dia, que percebi isso, na observação dos meus companheiros espectadores.
Não creio que o maior mérito esteja só no espetáculo. O mérito está na coerência do discurso e na certeza da função. Não se trata do simples gostar ou não gostar. Não importa se alguns (ou muitos) não gostaram, não importa se muitos (ou alguns) adoraram, o que fica é a importância indiscutível daquele espetáculo, daquele modo de dizer, no encontro que ocorreu e na aproximação clara entre palco e platéia. Houve conversa, límpida e simples: humana. Sim, houve choque também.Houve o choque necessário ao crescimento, a escuta de uma forma que pouco ou nada está por aí.
O que importa é que àquela experiência convidou-nos a sentir e a escutar e a pensar e a estar. E claro que Elias também aprendeu. Segundo ele, ao ouvir a fala acelerada e alta dos estudantes ingressantes assustou-se, pensou que o fracasso era certo, que inevitavelmente o encontro não ocorreria. Mas, ocorreu e foi bonito. Tão bonito quanto deve ser o encontro entre aquele que ama o que faz (não importa o quê) e aquele que está disposto a amar, mas quer aprender o como.
E as cortinas não se fecharam!